Seriado de anime japonês coloca metáforas que servem bem a situação dramática das sociedades da década de 2020.

Mais do que uma história de ficção científica sombria filosófica, o anime Ergo Proxy é um universo metafórico multifacetado, onde encontramos muitas questões históricas e contemporâneas da civilização humana. Escrito por Dai Satõ e dirigido por Shūkō Murase, tem um apelo cyberpunk para apresentar logo de início um enredo desconfortável, e também é bastante direto quanto a relação humanidade e seu meio ambiente. Uma sociedade onde mesmo a prole é fabricada é uma clara referência a nossas sociedades industriais consumistas e alienadas do planeta onde vivemos.

Ergo Proxy e as Redomas

A história apresenta muitos desdobramentos e é aberta a interpretações, típico de um time de criadores que não se contenta em contar uma história, mas de provocar nossa imaginação e nosso senso crítico. O anime foi ao ar em 2006 e a preocupação com mudanças climáticas entra como pano de fundo na trama pós apocalíptica – mas seria apenas isso? Ainda que o escritor mencione questões filosóficas existenciais como motivações básicas, ele também está dentro de nossa redoma, e atos criativos dessa natureza são fortemente afetadas pelas grandes preocupações coletivas, a iminência de uma catástrofe. Eu diria que nossos pesadelos ambientais emergem no anime.

O estética também é um forte elemento narrativo, não apenas com o óbvio contraste dentro e fora da redoma como ao refletir estados de espírito, como o veleiro atravessando regiões áridas sob o céu fechado e a fria neblina sinistra, um planeta que mais parece um grande cemitério. Do ponto de vista da comunicação, sinto-me um pouco como Vincent no veleiro buscando respostas do porque não conseguimos mudar a consciência coletiva. Porque fracassamos em passar a mensagem e ainda somos taxados de vilões?

O Veleiro Centzon Totochtin

No mundo pós-apocalíptico de Ergo Proxy, a sociedade responsável pela catástrofe global deixa seu legado conservador que é clonado através das gerações, o status quo. A sociedade não é capaz de viver sem uma estrutura verticalizada onde no topo há um semideus, cuja natureza a própria sociedade escolhe viver sem saber e que, com tantos poderes, termina por ser um servo do status quo – da própria sociedade. Quando o assim chamado Proxy abandona o posto, a cidade se auto reestrutura dentro do mesmo paradigma e de tudo faz para restaurar o antigo sistema, agindo de forma agressiva, destrutiva.

Nosso mundo, superpovoado e à beira de uma catástrofe climática, constitui-se de uma série de redomas com líderes semideuses encarregados de resolver nossos problemas, mas que terminam por manter tudo como está. É obviamente uma tarefa impossível dada a complexidade crescente de nossas estruturas. Esse modelo social verticalizado e místico é incoerente com o tipo de desafio, bem como com a melhor arma que temos: a Ciência. Pior, cria-se o conflito com a ciência sobre falsos dilemas. Nesse status quo há brechas onde vemos iniciativas que poderão ser decisivas para nossa sobrevivência, ao menos como sociedade, ou poderão sucumbir como já registrado no passado de nossa espécie. A reciclagem de lixo, por exemplo, é hoje apenas uma brecha, se a escala de reciclagem não inverter a relação com o volume total de lixo criado, vamos sucumbir sob montanhas de lixo!

Tentando sair da nossa redoma, observo que de uma certa forma já vivemos em um mundo pós-apocalíptico após uma explosão demográfica e industrial que gerou volumes inéditos de miséria e destruição. Com recursos naturais próximos do fim sob o ponto de vista da viabilidade econômica (não é preciso acabar, basta ser inviável de se obter) e mudanças climáticas próximas, nossas redomas poderão até sobreviver, mas darão lugar a outra sociedade, talvez mais evoluída ou talvez haja uma regressão histórica. Temos que lidar também com a possibilidade real de vir tudo abaixo e nosso mundo desaparecer por completo, tal qual o conhecemos. Acredito que dependerá muito da capacidade de pensarmos fora da redoma, todos nós. Hoje, boa parte dos industriais do campo – ditos latifundiários – olham uma área degradada e veem terra para cultivo ou criação de gado, assim como os industriais da cidade não veem povo como além de recursos humanos, ou commodities. Do lado oposto, o povo não percebe as questões climáticas como urgentes, percebem apenas a falta de dinheiro – são capitalistas ultraconservadores descapitalizados. Como tirar os outros para fora da redoma, ou para fora da caverna, é um desafio desde Platão, acho que é o nosso desafio, não esperemos que algum Proxy venha resolvê-lo.

Vincent Law e Re-L